exibições de letras 269

Auto-retrato

Antônio Miranda

Letra

    Às vezes sou um, às vezes sou outro:
    todo mundo é assim, ou é assado.

    Eu, sem fugir à regra, transgredi.

    Fui, ao mesmo tempo, eu e o outro
    -um para dentro, outro para os outros
    mas, confesso, sou igual a todos
    num disfarce que é a outra face
    de uma falsa dicotomia.

    Maniqueísmos? Planger ou prazer?

    Nem religioso eu sou, nem romântico,
    muito menos ideólogo ou assumido
    de qualquer coisa, na minha infidelidade,
    falta de fé. E, no entanto, obstinado
    quase otimista porque realista
    -na reversão da contradição.

    Sou um pouco o Orlando da Virginia Woolf
    o Patinho Feio disfarçado de Dorian Gray
    fui herói de histórias em quadrinhos
    namorei estrelas de Hollywood ou,
    mais terrestre, da Vera Cruz e da Atlântida
    ganhei o Prêmio Nobel, a Comenda Maior
    da Confraria dos Poetas Ególatras e Suicidas.

    Li uma montanha inexpugnável de livros
    tentei reescrevê-los, sem qualquer humildade
    subi, letra a letra, degraus estonteantes
    delirantes, construindo arquiteturas etéreas
    no círculo vicioso das virtualidades banais.

    Deveria rasgar todas as frases deletérias
    todas as imprecações, todas as contrafações
    verbais e venais que produzi - lixo execrável.

    Deveria envergonhar-me de minha falsa polidez
    de minha insensatez, minhas impropriedades
    mas sempre tenho a firmeza dos inseguros
    enquanto os crédulos, os convictos
    não resistem às próprias contradições.

    Transgredi mas, juro, apenas verbalmente.
    No mais, sou casto na minha perversidade.
    Sou beato na minha mais íntima heresia.
    E mais despretensioso do que a minha soberba.

    Quero dizer: no fundo sou inseguro e fiel
    a princípios de que nem participo.

    Deu para entender? Nem Deus pressente
    aquela dor que finjo que deveras sinto
    ao plagiar aquele poeta que nem mesmo venero.

    Vou na contra-mão da ordem estabelecida
    mas, disfarçando, eu vou é de costas
    e não estou sozinho, participando assim
    de uma nova modalidade olímpica ou acadêmica.

    Os que são de Bacabal que me sigam
    os que usam botas de ferro, brinco de osso
    que rezam constrangidos, os desamados
    os sem-biblioteca, os sem sentido.


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