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Declaração Em Juízo

Carlos Drummond de Andrade

LetraSignificado

    peço desculpas de ser
    o sobrevivente.
    não por longo tempo, é claro.
    tranqüilizem-se.
    mas devo confessar, reconhecer
    que sou sobrevivente.
    se é triste/cômico
    ficar sentado na platéia
    quando o espetáculo acabou
    e fecha-se o teatro,
    mais triste/grotesco é permanecer no palco,
    ator único, sem papel,
    quando o público já virou as costas
    e somente baratas
    circulam no farelo.

    reparem: não tenho culpa.
    não fiz nada para ser
    sobrevivente.
    não roguei aos altos poderes
    que me conservassem tanto tempo.
    não matei nenhum dos companheiros.
    se não saí violentamente,
    se me deixei ficar ficar ficar,
    foi sem segunda intenção.

    largaram-me aqui, eis tudo,
    e lá se foram todos, um a um,
    sem prevenir, sem me acenar,
    sem dizer adeus, todos se foram.
    (houve os que requintaram no silêncio).
    não me queixo. nem os censuro.
    decerto não houve propósito
    de me deixar entregue a mim mesmo,
    perplexo,
    desentranhado.
    não cuidaram que um sobraria.
    foi isso. tornei, tornaram-me
    sobre - vivente.

    se se admiram de eu estar vivo,
    esclareço: estou sobrevivo.
    viver, propriamente, não vivi
    senão em projeto. adiamento.
    calendário do ano próximo.
    jamais percebi estar vivendo
    quando em volta viviam quantos! quanto.
    alguma vez os invejei. outras, sentia
    pena de tanta vida que se exauria no viver
    enquanto o não viver, o sobreviver
    duranvam, perdurando.
    e me punha a um canto, à espera,
    contraditória e simplesmente,
    de chegar a hora de também
    viver.

    não chegou. digo que não. tudo foram ensaios,
    testes, ilustrações. a verdadeira vida
    sorria longe, indecifrável.
    desisti. recolhi-me
    cada vez mais, concha, à concha. agora
    sou sobrevivente.

    sobrevivente incomoda
    mais que fantasma. sei a mim mesmo
    incomodo-me. o reflexo é uma prova feroz.
    por mais que me esconda, projeto-me,
    devolvo-me, provoco-me.
    não adianta ameaçar-me. volto sempre,
    todas as manhãs me volto, viravolto
    com exatidão de carteiro que distribui más notícias.
    o dia todo é dia
    de verificar o meu fenômeno.
    estou onde não estão
    minhas raízes, meu caminho
    onde sobrei,
    insistente, reiterado, aflitivo
    sobrevivente
    da vida que ainda
    não vivi, juro por deus e o diabo, não vivi.

    tudo confessado, que pena
    me será aplicada, ou perdão?
    desconfio nada pode ser feito
    a meu favor ou contra.
    nem há técnica
    de fazer, desfazer
    o infeito infazível.
    se sou sobrevivente, sou sobrevivente.
    cumpre reconhecer-me esta qualidade
    que finalmente o é. sou o único, entendem?
    de um grupo muito antigo
    de que não há memória nas calçadas
    e nos vídeos.
    único a permanecer, a dormir,
    a jantar, a urinar,
    a tropeçar, até mesmo a sorrir
    em rápidas ocasiões, mas garanto que sorrio,
    como neste momento estou sorrindo
    de ser - delícia? - sobrevivente.

    é esperar apenas, está bem?
    que passe o tempo de sobrevivência
    e tudo se resolve sem escândalo
    ante a justiça indiferente.
    acabo de notar, e sem surpresa:
    não me ouvem no sentido de entender,
    nem importa que um sobrevivente
    venha contar seu caso, defender-se
    ou acusar-se, é tudo a mesma
    nenhuma coisa, e branca.


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