Ei-Lo

Silêncio e missão em “Ei-Lo”: julgamento e redenção

“Ei-Lo”, de Samuel Úria, encena o julgamento e a Paixão de Cristo pela voz de quem o negou, transformando o silêncio no centro da mensagem. As imagens bíblicas são explícitas: “Tinhas palavras para calar o mar” remete ao milagre nos Evangelhos; “verbo antigo” evoca o Logos do prólogo de João; “Ei-lo, o homem” cita o Ecce Homo de Pilatos; “rei dos réus, o agitador” condensa as acusações; e o “copo” aponta para o cálice de Getsêmani. O narrador admite “já lá estava pra te negar”, eco de Pedro, e se espanta com a recusa de defesa: “Palavras não, nem uma!”. A pergunta “E que lição nos dás por não responderes?” sublinha que o gesto mudo é o ensinamento. Quem podia calar o mar escolhe calar-se “no vai ou racha foste a rachar / Corpo quebrado e mudo”, para cumprir a missão.

A letra junta cura e confronto: “Tinhas o dedo para pôr na ferida / Nalguns pra sarar e noutros para fazer doer”. A expressão popular ganha duplo sentido: dizer a verdade que dói e uma alusão subtil a Tomé e às chagas, unindo exposição e cura. “De onde é que vens? Posso soltar-te, só que não” desloca a cena para o dilema de Pilatos, tensão entre poder formal e impotência real. O silêncio surge como escolha ativa “pra que o copo não passasse por nós”: o cálice do sofrimento não é evitado, é assumido por nós. Fiel à escrita introspectiva de Samuel Úria, que cruza reflexão existencial com imagens bíblicas e sociais, a canção relata o que se deu e projeta o que permanece: um silêncio que confronta, revela e redime, desafiando-nos a imitá-lo quando calar é coragem.