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Mensagem a Rubem Braga

Vinicius de Moraes

Letra

    Os doces montes cônicos de feno
    (Decassílabo solto num postal de Rubem Braga, da Itália.)

    A meu amigo Rubem Braga
    Digam que vou, que vamos bem: só não tenho é coragem de escrever
    Mas digam-lhe. Digam-lhe que é Natal, que os sinos
    Estão batendo, e estamos no Cavalão: o Menino vai nascer
    Entre as lágrimas do tempo. Digam-lhe que os tempos estão duros
    Falta água, falta carne, falta às vezes o ar: há uma angústia
    Mas fora isso vai-se vivendo. Digam-lhe que é verão no Rio
    E apesar de hoje estar chovendo, amanhã certamente o céu se abrirá de azul
    Sobre as meninas de maiô. Digam-lhe que Cachoeiro continua no mapa
    E há meninas de maiô, altas e baixas, louras e morochas
    E mesmo negras, muito engraçadinhas. Digam-lhe, entretanto
    Que a falta de dignidade é considerável, e as perspectivas pobres
    Mas sempre há algumas, poucas. Tirante isso, vai tudo bem
    No Vermelhinho. Digam-lhe que a menina da Caixa
    Continua impassível, mas Caloca acha que ela está melhorando
    Digam-lhe que o Ceschiatti continua tomando chope, e eu também Malgrado uma avitaminose B e o fígado ligeiramente inchado.
    Digam-lhe que o tédio às vezes é mortal; respira-se com a mais extrema
    Dificuldade; bate-se, e ninguém responde. Sem embargo
    Digam-lhe que as mulheres continuam passando no alto de seus saltos, e a moda das saias curtas
    E das mangas japonesas dão-lhes um novo interesse: ficam muito provocantes.
    O diabo é de manhã, quando se sai para o trabalho, dá uma tristeza, a rotina: para a tarde melhora.
    Oh, digam a ele, digam a ele, a meu amigo Rubem Braga
    Correspondente de guerra, 250 FEB, atualmente em algum lugar da Itália
    Que ainda há auroras apesar de tudo, e o esporro das cigarras
    Na claridade matinal. Digam-lhe que o mar no Leblon
    Porquanto se encontre eventualmente cocô boiando, devido aos despejos
    Continua a lavar todos os males. Digam-lhe, aliás
    Que há cocô boiando por aí tudo, mas que em não havendo marola
    A gente se agüenta. Digam-lhe que escrevi uma carta terna
    Contra os escritores mineiros: ele ia gostar. Digam-lhe
    Que outro dia vi Elza-Simpatia-é-quase-Amor. Foi para os Estados Unidos
    E riu muito de eu lhe dizer que ela ia fazer falta à paisagem carioca
    Seu riso me deu vontade de beber: a tarde
    Ficou tensa e luminosa. Digam-lhe que outro dia, na Rua Larga
    Vi um menino em coma de fome (coma de fome soa esquisito, parece
    Que havendo coma não devia haver fome: mas havia).
    Mas em compensação estive depois com o Aníbal
    Que embora não dê para alimentar ninguém, é um amigo. Digam-lhe que o Carlos
    Drummond tem escrito ótimos poemas, mas eu larguei o Suplemento Digam-lhe que está com cara de que vai haver muita miséria-de-fim-de-ano
    Há, de um modo geral, uma acentuada tendência para se beber e uma ânsia
    Nas pessoas de se estrafegarem. Digam-lhe que o Compadre está na insulina
    Mas que a Comadre está linda. Digam-lhe que de quando em vez o Miranda passa
    E ri com ar de astúcia. Digam-lhe, oh, não se esqueçam de dizer
    A meu amigo Rubem Braga, que comi camarões no Antero
    Ovas na Cabaça e vatapá na Furna, e que tomei plenty coquinho
    Digam-lhe também que o Werneck prossegue enamorado, está no tempo
    De caju e abacaxi, e nas ruas
    Já se perfumam os jamineiros. Digam-lhe que tem havido
    Poucos crimes passionais em proporção ao grande número de paixões
    À solta. Digam-lhe especialmente
    Do azul da tarde carioca, recortado
    Entre o Ministério da Educação e a ABI. Não creio que haja igual
    Mesmo em Capri. Digam-lhe porém que muito o invejamos
    Tati e eu, e as saudades são grandes, e eu seria muito feliz
    De poder estar um pouco a seu lado, fardado de segundo sargento. Oh
    Digam a meu amigo Rubem Braga
    Que às vezes me sinto calhorda mas reajo, tenho tido meus maus momentos
    Mas reajo. Digam-lhe que continuo aquele modesto lutador
    Porém batata. Que estou perfeitamente esclarecido
    E é bem capaz de nos revermos na Europa. Digam-lhe, discretamente,
    Que isso seria uma alegria boa demais: que se ele
    Não mandar buscar Zorinha e Roberto antes, que certamente
    Os levaremos conosco, que quero muito
    Vê-lo em Paris, em Roma, em Bucareste. Digam, oh digam
    A meu amigo Rubem Braga que é pena estar chovendo aqui
    Neste dia tão cheio de memórias. Mas
    Que beberemos à sua saúde, e ele há de estar entre nós
    O bravo Capitão Braga, seguramente o maior cronista do Brasil
    Grave em seu gorro de campanha, suas sombrancelhas e seu bigode circunflexos
    Terno em seus olhos de pescador de fundo
    Feroz em seu focinho de lobo solitário
    Delicado em suas mãos e no seu modo de falar ao telefone
    E brindaremos à sua figura, à sua poesia única, à sua revolta, e ao seu cavalheirismo
    Para que lá, entre as velhas paredes renascentes e os doces montes cônicos de feno
    Lá onde a cobra está fumando o seu moderado cigarro brasileiro
    Ele seja feliz também, e forte, e se lembre com saudades
    Do Rio, de nós todos e ai! de mim.


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