Mel

“Mel”: desejo, transe e a “abelha rainha” de Maria Bethânia

Em “Mel”, Caetano Veloso (em parceria com Waly Salomão) converte o desejo em culto. A imagem de “abelha rainha” não é só erotismo: mira a persona de Maria Bethânia, que mais tarde seria celebrada assim — a Mangueira desfilou em 2016 a alegoria “Abelha Rainha”. Ao embaralhar o relógio — “é meio-dia, é meia-noite, é toda hora” — a canção aciona um transe devocional em que desejo e espiritualidade se misturam, marca forte do trabalho de 1979. O pedido “faz de mim um instrumento de teu prazer / e de tua glória” concentra o duplo sentido: ser instrumento é entregar-se sexualmente e, ao mesmo tempo, tornar-se corpo-canto, o veículo musical da rainha. A voz invoca e celebra, como em ritual, a amada-feiticeira que “cavo a direita claridade do céu / e agarro o sol com a mão”, imagem de êxtase em que o impossível parece tátil.

As metáforas táteis e sonoras sustentam a embriaguez sensorial: “lambe olhos, torce cabelos” põe o desejo na pele e no gesto; “zumzum na testa / na janela / na fresta da telha” usa aliterações em z, s e m para imitar o zumbido que toma casa e corpo. O movimento de dentro para fora — “pela escada, pela porta, pela estrada toda a fora” — deságua na natureza animada (“anima de vida o seio da floresta”), e o mel é doçura mística e metáfora carnal: “favo” e “boca de mel, carmim, carnuda, vermelha” unem cor, carne e lábios. Quando “o amor empresta a praia deserta” e “zumbe na orelha, concha do mar”, o som vira marulho íntimo, colando sexo, música e cosmo numa mesma vibração. “Mel” ergue uma devoção sensual à “abelha rainha” — Bethânia como diva e entidade — traduzida em ritmo, repetição e imagens que fazem do corpo santuário e do canto, rito.