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LetraSignificado

    Sequer conheço Fulana
    Vejo Fulana tão curto
    Fulana jamais me vê
    Mas como eu amo Fulana

    Amarei mesmo Fulana?
    Ou é ilusão de sexo?
    Talvez a linha do busto
    Da perna, talvez o ombro

    Amo Fulana tão forte
    Amo Fulana tão dor
    Que todo me despedaço
    E choro, menino, choro

    Mas Fulana vai se rindo
    Vejam Fulana dançando
    No esporte ele está sozinha
    No bar, quão acompanhada

    E Fulana diz mistérios
    Diz marxismo, rimmel, gás
    Fulana me bombardeia
    No entanto sequer me vê

    E sequer nos compreendemos
    É dama de alta fidúcia
    Tem latifúndios, iates
    Sustenta cinco mil pobres

    Menos eu... Que de orgulhoso
    Me basto pensando nela
    Pensando com unha, plasma
    Fúria, gilete, desânimo

    Amor tão disparatado
    Desbaratado é que é
    Nunca a sentei no meu colo
    Nem vi pela fechadura

    Mas eu sei quanto me custa
    Manter esse gelo digno
    Essa indiferença gaia
    E não gritar: Vem, Fulana!

    Como deixar de invadir
    Sua casa de mil fechos
    E sua veste arrancando
    Mostrá-la depois ao povo

    Tal como é, ou deve ser
    Branca, intacta, neutra, rara
    Feita de pedra translúcida
    De ausência e ruivos ornatos

    Mas como será Fulana
    Digamos, no seu banheiro?
    Só de pensar em seu corpo
    O meu se punge... Pois sim

    Porque preciso do corpo
    Para mendigar Fulana
    Rogar-lhe que pise em mim
    Que me maltrate... Assim não

    Mas Fulana será gente?
    Estará somente em ópera?
    Será figura de livros?
    Será bicho? Saberei?

    Não saberei? Só pegando
    Pedindo: Dona, desculpe
    O seu vestido esconde algo?
    Tem coxas reais? Cintura?

    Fulana às vezes existe
    Demais: Até me apavora
    Vou sozinho pela rua
    Eis que Fulana me roça

    Olho: Não tem mais Fulana
    Povo se rindo de mim
    (Na curva do seu sapato
    O calcanhar rosa e puro.)

    E eu insonte, pervagando
    Em ruas de peixe e lágrima
    Aos operários: A vistes?
    Não, dizem os operários

    Aos boiadeiros: A vistes?
    Dizem não os boiadeiros
    Acaso a vistes, doutores?
    Mas eles respondem: Não!

    Pois é possível? Pergunto
    Aos jornais: Todos calados
    Não sabemos se Fulana
    Passou. De nada sabemos

    E são onze horas da noite
    São onze rodas de chope
    Onze vezes dei a volta
    De minha sede; e Fulana

    Talvez dance no cassino
    Ou, e será mais provável
    Talvez beije no Leblon
    Talvez se banhe na Cólquida

    Talvez se pinte no espelho
    Do táxi; talvez aplauda
    Certa peça miserável
    Num teatro barroco e louco

    Talvez cruze a perna e beba
    Talvez corte figurinhas
    Talvez fume de piteira
    Talvez ria, talvez minta

    Esse insuportável riso
    De Fulana de mil dentes
    (Anúncio de dentifrício)
    É faca me escavacando

    Me ponho a correr na praia
    Venha o mar! Venham cações!
    Que o farol me denuncie!
    Que a fortaleza me ataque!

    Quero morrer sufocado
    Quero das mortes a hedionda
    Quero voltar repelido
    Pela salsugem do largo

    Já sem cabeça e sem perna
    À porta do apartamento
    Para feder: De propósito
    Somente para Fulana

    E Fulana apelará
    Para os frascos de perfume
    Abre-os todos: Mas de todos
    Eu salto, e ofendo, e sujo

    E Fulana correrá
    (Nem se cobriu; vai chispando)
    Talvez se atire lá do alto
    Seu grito é: Socorro! E Deus

    Mas não quero nada disso
    Para que chatear Fulana?
    Pancada na sua nuca
    Na minha é que vai doer

    E daí não sou criança
    Fulana estuda meu rosto
    Coitado: De raça branca
    Tadinho: Tinha gravata

    Já morto, me quererá?
    Esconjuro se é necrófila
    Fulana é vida, ama as flores
    As artérias e as debêntures

    Sei que jamais me perdoara
    Matar-me para servi-la
    Fulana quer homens fortes
    Couraçados, invasores

    Fulana é toda dinâmica
    Tem um motor na barriga
    Suas unhas são elétricas
    Seus beijos refrigerados

    Desinfetados, gravados
    Em máquina multilite
    Fulana, como é sadia!
    Os enfermos somos nós

    Sou eu, o poeta precário
    Que fez de Fulana um mito
    Nutrindo-me de Petrarca
    Ronsard, Camões e Capim

    Que a sei embebida em leite
    Carne, tomate, ginástica
    E lhe colo metafísicas
    Enigmas, causas primeiras

    Mas, se tentasse construir
    Outra Fulana que não
    Essa de burguês sorriso
    E de tão burro esplendor?

    Mudo-lhe o nome; recorto-lhe
    Um traje de transparência
    Já perde a carência humana
    E bato-a; de tirar sangue

    E lhe dou todas as faces
    De meu sonho que especula
    E abolimos a cidade
    Já sem peso e nitidez

    E vadeamos a ciência
    Mar de hipóteses. A Lua
    Fica sendo nosso esquema
    De um território mais justo

    E colocamos os dados
    De um mundo sem classes e imposto
    E nesse mundo instalamos
    Os nossos irmãos vingados

    E nessa fase gloriosa
    De contradições extintas
    Eu e Fulana, abrasados
    Queremos... Que mais queremos?

    E digo a Fulana: Amiga
    Afinal nos compreendemos
    Já não sofro, já não brilhas
    Mas somos a mesma coisa

    (Uma coisa tão diversa
    Da que pensava que fôssemos.)

    Composição: Carlos Drummond de Andrade. Essa informação está errada? Nos avise.
    Enviada por Guilherme. Revisões por 2 pessoas. Viu algum erro? Envie uma revisão.

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