A Noiva da Cidade

Vigilância, moralismo e desejo em “A Noiva da Cidade”

Com Francis Hime, Chico Buarque escreve “A Noiva da Cidade” para o filme homônimo de Alex Vianny, sobre uma atriz famosa que volta à terra natal. A canção transforma a cantiga de ninar em lente do olhar masculino: “Tutu-Marambá” vira código para o voyeur da cidade. O narrador soa como um coro de vizinhos moralistas e excitados que vigia a jovem na janela aberta e se escuda no tom infantil para justificar a vigilância. A comunidade se julga dona da “noiva”: quer ver, comentar, possuir. Trechos como “Quer dormir impunemente” e “sabe lá se está vestida” deslocam a culpa do desejo para a moça. “Papai tá lá na roça e mamãe foi passear” sugere a oportunidade para a ronda masculina, enquanto “está roubando o sono de outra gente” explicita o subtexto: os marmanjos não dormem por desejo e culpam a vítima.

A base de ninar — “Tutu-Marambá” e “Boi da cara preta” — vem do folclore, mas aqui é invertida: o bicho‑papão são os homens que querem “entrar nos versos da cantiga de ninar” e “ser um Tutu-Marambá”, isto é, invadir os sonhos dela. A repetição “Tutu-Marambá não venha mais cá”, como aponta o site de Chico, tenta espantar esses intrusos, embora o refrão também os convoque ironicamente como assombração. A melodia de Hime mistura doçura e perigo, intensificando o contraste. No fecho, “Boi da cara preta, pega essa menina” escancara a virada: a cantiga que acalenta se torna ameaça dirigida à mulher desejada. O resultado expõe e satiriza o moralismo voyeurista da pequena cidade e como o desejo coletivo tenta policiar o corpo feminino.