Pescador e Catireiro (part. Abel e Caim)

Raiz e ofício em “Pescador e Catireiro (part. Abel e Caim)”

No álbum Meu Reino Encantado III (2005), Daniel convida Abel e Caim para reaproximar o público do sertanejo raiz, gravando “Pescador e Catireiro (part. Abel e Caim)”, obra de Cacique e Carreirinho. A canção funciona como um inventário de saberes do mato e da beira d’água: o narrador ergue sua vida com as próprias mãos — “Comprei uma mata virgem / fiz um rancho de barrote amarrado com cipó cambira” (barrote é viga; cambira é cipó resistente) — e fixa morada “na beira da lagoa” para pescar traíra. O detalhamento das madeiras (“canoa de paineira”, “varejão de guaiuvira”, “remos de sucupira”) evidencia domínio da mata; “poita pesa uma arroba” revela o sistema de medidas do campo; “tarrafa” é a rede de arremesso. Até a caça entra (“capivara é bicho arisco”), e “no lugar que o índio canta” marca respeito ao canto ancestral. O orgulho em ser chamado de “caipira” afirma autenticidade acima da aparência da cidade.

O “catireiro” do título completa o retrato: catira é dança de palmas e sapateado, e “pagode” aqui significa festa caipira, não o gênero do samba. No “repique da viola”, ele espanta a melancolia — “Se a tristeza está na festa eu chego ela se retira” — e vira motor da alegria comunitária. A estrofe final contrasta campo e cidade: “Muita gente não conhece o cantar da curruira”, nem o gosto da “pinga com sucupira” (cachaça infusionada, usada como remédio caseiro) e da “cambuquira” (broto de abóbora). Ao encerrar com “gosto do sistema do caipira / pode até ficar de fogo que ele não conta mentira”, a música reafirma um código de honra direto. Na voz de Daniel, com a dupla veterana, esse repertório de ofícios, sabores e cantorias vira documento afetivo e fiel ao espírito de resgate dos clássicos e de seus guardiões.