Trance

“Trance” e o choque entre sucesso, vocação e afeto

Embora soe como um desabafo íntimo, “Trance” ganha outra camada quando lembramos que I Gufi trabalhava com sátira e humor negro e enfrentou censura na TV italiana. O pedido insistente “Despiértame de este trance” (desperte-me deste transe) também pode funcionar como crítica ao torpor social de quem troca sentido por sucesso e status. Na superfície, a voz admite ter “perdido a vocación” (perdi a vocação), ter acreditado que fazia “una buena decisión” (uma boa decisão) e descobrir que foi “lo peor” (o pior). O “trance” aparece como anestesia emocional após uma escolha que prometia felicidade e gerou infelicidade; por isso o refrão tenta acordar antes de “desilusionar” (se desiludir) outra vez, revelando um ciclo de expectativas e frustrações.

A virada vem quando o eu lírico reconhece: “tengo dinero / pero no me servirá / si no lo puedo compartir / sin ti” (tenho dinheiro / mas não vai me servir / se eu não puder compartilhar / sem você), mostrando que a conquista material é vazia sem vínculo e partilha. A letra comporta duas leituras que se reforçam. Na leitura amorosa, trata do luto por uma relação: ele abriu mão de algo essencial e percebe que decisões “racionais” não compensam a falta de afeto; o despertar é sair da negação e não repetir “el mismo serio gran error” (o mesmo grande erro). Na leitura satírica, coerente com I Gufi, o texto ironiza a ideologia do sucesso: a vocação vira integridade artística trocada por conveniência; “tengo dinero” denuncia o vazio do consumismo; e o “trance” é a hipnose coletiva. Em um grupo que usava metáforas para driblar limites e provocar, chamar ao despertar é convocar o ouvinte de volta ao que dá sentido real: partilha, não saldo bancário.