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Peleja de Riachão Com o Diabo

Leandro Gomes de Barros

LetraSignificado

    Riachão tava cantando
    Na cidade do assu
    Quando apareceu um negro
    Da espécie de urubu
    Tinha camisa de solo
    A calça de couro cru

    Beiços grossos e virados
    Como a sola de um chinelo
    Um olho muito encarnado
    O outro bastante amarelo
    Esse chamou riachão
    Para ir cantar martelo

    Riachão arrespondeu
    Não canto com nego desconhecido!
    Por que pode ser escravo
    E ande por aqui fugido
    Isso é dar calda a nambu
    E só entra nego incherido

    Eu sou livre como o vento
    A minha linhagem é nobre
    Com muitos mais ilustrados
    Que o Sol no mundo cobre
    Nasci dentro da grandeza
    Não sai da raça pobre

    Você nega por que quer
    Está conhecido demais
    Diga se está fugido
    Diga quanto tempo faz?
    Se você não for cativo
    Obra desmente sinais

    Seja rico seja escravo
    Eu quero cantar martelo
    Afine sua viola!
    Vamo entra num duelo
    Só com minha presença
    O senhor tá ficando amarelo

    Vejo um vulto tão pequeno
    Que nem posso enxergar
    Parece que não precisa
    Nem a viola afinar
    Pela ramagem da árvore
    Vê-se os fruto que ela dá

    Riachão, isto são frases
    De homem muito atrasado
    Porque são vistos fenômenos
    Que na terra têm se dado
    Uma cobra pequenina
    Mata um boi agigantado

    Meu riacho pela seca
    Dá cheias descomunais
    Na correnteza das águas
    Descem grandes animais
    Jiboias, sucurujubas
    E monstruosos jaguais

    O jaguar rende-me culto
    A serpente aos meus pés morre
    Quando chega minha ira
    Só um poder o socorre
    Digo ao rio: Pare ai
    A água para e não corre

    Você não é Josué
    Que mandou o Sol parar
    Este parou três dias
    Para a guerra se acabar
    Nem Moisés com a sua vara
    Fez a água do mar secar

    Faço tudo que quiser
    Minha força é sem limite
    Os feitos por mim obrados
    Não vejo homem que os cite
    Eu determino uma coisa
    Não ha força que evite

    Salomão também fazia
    O que quera fazer
    Por meio de mágica e química
    Quis novamente nascer
    Em vez do nascimento
    Ele conseguiu morrer

    Salomão facilitou
    Confiado na ciência
    Encaminhou tudo bem
    Mas faltou-lhe a paciência
    Se não fosse esse erro
    Tinha outra existência

    Eu necessito saber
    Onde é seu natural
    Porque não sei se o senhor
    Tem nascimento legal
    De qual nação é que vem
    Se procede bem ou mal

    Você vem interrogar-me
    Eu lhe interrogo também
    Diga pra onde vai
    E de que parte é que vem
    Se é solteiro ou casado
    Que trabalho você tem?

    Não tenho superior
    Sou filho da liberdade
    E não conto a minha vida
    Pois não há necessidade
    Eu não sou foragido
    Nem você é autoridade

    Eu preciso advertir-lhe
    Fazer-lhe observação
    Me trate com muito jeito
    Cante com muita atenção
    Veja que não se descuide
    E passe o pé pela mão

    Eu já canto há muito tempo
    Já estou muito habilitado
    Conheço alguma matérias
    Sou um pouco adiantado
    Tive estudo quatro anos
    Me considero letrado

    Sou professor de matérias
    Que sábio não as conhece
    A lei que dito no mundo
    O próprio rei obedece
    Meus feitos são conhecidos
    A fama se estende e cresce

    Você diz que tem ciência
    Dê-me uma explicação
    Se a terra faz movimento
    De quem é a rotação?
    Porque é que em 12 horas
    Há essa transformação?

    O Sol não é quem se move
    É fixo em seu lugar
    A terra está sobre eixos
    Os eixos a faz rodar
    Que por essa rotação
    Faz a luz do Sol faltar

    Descreva o grande mistério
    Que entre nós a terra tem
    De que é formada a chuva?
    Em que estado ela vem?
    É criada aqui por perto
    Ou em algum lugar mas além?

    Á água em estado líquido
    Por meio de abaixamento
    Que há na temperatura
    E pelo resfriamento
    Essa água é condensada
    Ajudada pelo vento

    A corrente atmosférica
    Duma montanha elevada
    Que ajuda a temperatura
    Forma nuvem condensada
    Do vento movendo as nuvens
    É disso a chuva formada

    Que essa chuva depois
    Que toda terra ensopar
    Por meio de evaporação
    Torna ao espaço voltar
    Reproduzindo o processo
    Que acabei de lhe tratar

    O senhor conhece bem
    Este país brasileiro?

    Ora, respondeu o negro
    Eu conheço o estrangeiro
    Desde o córrego mais pequeno
    Até o maior ribeiro

    Por exemplo: O Amazonas
    Que estrema com o Pará
    O Pará com o Maranhão
    Piauí com o Ceará
    E assim todos mais outros
    Se alguém duvida é ir lá

    Esse qualquer um daqui
    Pretendendo viajar
    Até o Rio de Janeiro
    E não querendo ir por mar
    Eu lhe ensino o caminho
    Ele vai sem se vexar

    Como faz essa viagem?
    Onde encontra o caminho?
    Lugar duma só morada
    Sem haver mais um vizinho
    Tanto que em muitos lugares
    Não anda homem sozinho

    Pode qualquer um sair
    Do assu a mossoré
    Querendo poder passar de caicó
    Subir pela margem esquerda
    Do rio seridó

    Riachão disse consigo
    Este negro é um danado
    Este saiu do inferno
    Pelo demônio mandado
    E para enganar-me veio
    Em um negro transformado

    Disse o negro: Meu amigo
    Não queira desconfiar
    Garanto que o senhor
    Não ouviu bem eu cantar
    Na altura que eu canto
    Outro não pode chegar

    Vá na altura que for
    (Riachão lhe respondeu)
    Remexa todos os livros
    Que o senhor aprendeu
    Eu não conheço esse ente
    Que cante mais do que eu

    Você ficará sabendo
    O peso dum cantador
    Quando me vir outra vez
    Me trate de professor
    Render-me a obediência
    Conhecerá o meu valor

    O senhor diga o seu nome
    Eu quero lhe conhecer
    Pois só assim vou dar
    O valor que merecer
    Em tudo que você diz
    Ainda não posso crer

    Você sabendo quem sou
    Talvez fique assombrado
    Superior a você
    Comigo tem se espantado
    Os grandes de sua terra
    Eu tenho subjugado

    Eu canto há dezoito anos
    E vinte toco viola
    Sempre encontro cantador
    Que só tem fama e parola
    Quando canta meio dia
    Cai nos meus pés, no chão rola

    Eu há muitos anos canto
    Não vou em toda função
    Arranco ponta de touro
    Quebro furor de leão
    Eu achei esse duro
    Que para mim tenha ação

    Mas de hoje em diante
    O senhor tem de encontrar
    A força superior
    Que obrigue a se calar
    Porque eu boto um cerco
    Quem vai não pode voltar

    Manoel, tu és criança
    Só tens mesmo é pabulagem
    Veja que fala é fôlego
    Porém obrar é coragem
    Juro que de hora em diante
    Não contarás vantagem

    Meu pai chamava antônio
    Seu apelido era rio
    Duma enxurrada que dava
    Cobia todo baixio
    Escavava em tempo de inverno
    Enchia em tempo de estio

    Conheci muito seu pai
    Que vivia de pesca
    Sua mãe era tão pobre
    Que vivia dum tear
    Seu padrinho tomou você
    E levou-o parar criar

    Onde morava o senhor
    Que o meu avô conheceu?
    Que eu nem me lembro mais
    Do tempo que ele morreu
    E você está padecendo
    Muito mais moço do que eu

    Eu sei do dia e da hora
    Que nasceu seu bisavô
    Chamava-e Ana Mendes
    A parteira que o pegou
    Conheci muito o frade
    E vi quando o batizou

    Bote sua mascara abaixo
    Conte a história direito
    Da forma que você conta
    Eu não fico satisfeito
    Como vê-e um objeto
    Antes daquele ser feito?

    Seu bisavô se chamava
    Apolinário canção
    Era filho dum ferreiro
    Que o chamavam gavião
    Uai bisavó, lourença
    Filha de amaro assunção

    Mas que idade tem você?
    Que me faz admirar
    Conheceu meu bisavô
    Eu não posso acreditar
    Assim nestas condições
    Faz até desconfiar

    Seu bisavô e avô
    Foram por mim conhecidos
    Seu pai, sua mãe e você
    Antes de serem nascidos
    Já estavam em minha nota
    Para serem protegidos

    Que proteção te você
    Para proteger alguém?
    Sua pessoa e os trajes
    Mostram o que você tem
    A sua cor e aspeto
    Esclarecem muito bem

    Eu protejo você tanto
    Que o defendi de morrer
    Você se lembra da onça
    Que uma vez quis lhe comer?
    Que apareceu um cachorro
    E fez a onça correr

    Me lembro perfeitamente
    Quando a onça me emboscou
    Que já marcando o salto
    Que um cachorro chegou
    A onça coreu com medo
    Eu não sei quem me salvou

    Pois foi este seu criado
    Que viu a onça embosca-lo
    Eu chamei por meu cachorro
    Para da onça livrá-lo
    Se lembra quando você
    Ouviu o go canto do galo?

    Eu me lembro disso tudo
    Porque assim foi passado
    Mas que idade tinha eu
    Quando esse caso foi dado?
    Eu era tão pequenino
    Que meu pai teve cuidado

    Você tinha nove anos
    Foi caçar um novilhote
    Se entreteu com umas flores
    Que tinha lá no serrote
    A onça foi esperá-lo
    Para soltar-lhe o bote

    Riachão disse consigo
    De onde veio este ente
    Que de toda a minha vida
    Conhece perfeitamente?
    Este será o diabo
    Que esta figurando gente?

    O senhor pergunta assim
    De que parte venho eu
    Eu venho de onde não vai
    Pensamento como o seu
    Eu saí do ideal
    Primeiro que apareceu

    Agora acabei de crer
    Que tu és o inimigo
    Te transformaste em homem
    Para vir cantar comigo
    Mas eu acredito em Deus
    Não posso correr perigo

    Inda não te ameacei
    Nem pretendo ameaça-lo
    Estou pronto a defendê-lo
    Se alguém quiser atacá-lo
    Em minha humilde pessoa
    Tem um pequeno vassalo

    Não quero saber de ti
    Porque tu é o traidor
    Desobedeceste a Deus
    Sendo ele o criador
    Fizeste traição a ele
    Quanto mais a um pecador

    Riachão, amas a Deus
    Sendo mal recompensando
    Deus fez de Paulo um monarca
    De Pedro um simples soldado
    Fez um com tanta saúde
    Outro cego e aleijado

    Se Deus fez de Paulo um rei
    Porque Paulo merecia
    Se fez de Pedro um soldado
    Era o que a Pedro cabia
    Se não fosse necessário
    O grande Deus não fazia

    O teu vizinho e parente
    Enricou sem trabalhar
    Teu pai trabalhava tanto
    E nunca pode enricar
    Não se deitava uma noite
    Que não deixasse de rezar

    Meu pai morreu na pobreza
    Foi fiel ao seu senhor
    Executou toda ordem
    Que lhe deu o criador
    E foi uma das ovelhas
    Que deu mais gosto ao pastor

    Arre lá! Lhe disse o negro
    Você é caso sem jeito
    Eu com toda paciência
    Estou-lhe ensinando direito
    Você vê que está errado
    Faz que não vê o defeito

    É muito feliz o homem
    Que com tudo se consola
    Posso morrer na pobreza
    Me acha pedindo esmola
    Deus me dá para passar
    Ciência e esta viola

    O negro olhou riachão
    Com os olhos de cão danado
    Riachão gritou: Jesus
    Homem Deus sacramentado
    Valha-me a virgem Maria
    A mãe do verbo encarnado

    O negro soltou um grito
    Ali desapareceu
    Duma catinga de enxofre
    A casa toda se encheu
    Os cães uivaram na rua
    O chão se estremeceu

    Riachão ficou cismado
    Com cantor desconhecido
    Que quando encontrava um
    Tomava logo sentido
    O seu primeiro verso
    Era a Deus oferecido


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