Recôncavo

Orgulho e cicatriz no “Recôncavo”, de Maria Bethânia

Em “Recôncavo”, Maria Bethânia constrói uma autobiografia territorial. A narradora se torna estrutura da região — “varanda”, “mourão”, “pedra do cais” — para afirmar que sua vida sustenta e é sustentada pela terra. O “rio que corta a minha vida” remete ao Subaé, em Santo Amaro, e vira cicatriz histórica, lembrando a economia da cana e a escravidão que moldaram o Recôncavo. No centro, a declaração “Sou índio de sangue latino / Sou negro dos canaviais / Eu sou da nação da cana / Da Bahia suburbana / Do samba em linhas gerais” concentra mestiçagem, território e trabalho. Já “Bahia de todos os santos / Dos santos de todos ais” joga com o toponímico da Baía de Todos-os-Santos e o lamento (“ais”), indicando que a fé convive com dores ancestrais — em sintonia com o catolicismo, o candomblé e as irmandades locais.

O refrão “Luz que ilumina / iluminai” funciona como ladainha e costura forma e conteúdo: um pedido de guia espiritual que reflete o sincretismo de Santo Amaro, reforçado pelo vínculo de Bethânia com sua cidade natal e por sua celebração de Nossa Senhora da Purificação em 2025. As imagens “varanda dividida”, “mourão que segura viga” e “pedra que sustenta o cais” condensam resistência e responsabilidade coletiva: a pessoa como pilar da casa, da roça e do porto — espaços centrais da história do Recôncavo. “Varanda dividida” também sugere identidades atravessadas e fronteiras sociais. A canção celebra raízes indígenas e negras, o samba de roda e a Bahia de Todos-os-Santos, enquanto reconhece a ferida no rio que “cortou-me pra nunca mais”. Do atrito entre orgulho e dor nasce o pedido de luz, por proteção e continuidade das tradições.