Bodas

“Bodas”: violência imperial, ditadura e saque no porto

Em “Bodas”, de Milton Nascimento, a saudação “Deus salve sua rainha” aparece como ironia contra o invasor. A “canhoneira inglesa” condensa a crítica ao colonialismo e, por extensão, à violência da ditadura. O enredo é direto: “Chegou no porto um canhão / De repente matou tudo” e, depois do banho de sangue, a embarcação parte “levando cacau e sangue”. Essa imagem dialoga com o filme Os Deuses e os Mortos (1970), de Ruy Guerra, ambientado na Bahia cacaueira dos anos 1930, onde elites exploram a terra e o povo; o cacau citado é a mercadoria que sai do país junto com o sangue de quem a produz, metáfora da espoliação. A figura do capitão “calado” e “triste” sugere o executor desumanizado pela máquina de poder: cumpre a ordem de matar e saquear e, ainda assim, “vai mais triste”, com “porão e barriga cheia” — ambiguidade que aponta tanto para a ganância quanto para o vazio moral.

A repetição silábica — “neira, neira”, “esa, esa”, “mata, mata”, “prata, prata” — cria um batuque hipnótico que evoca cadências militares e o vai e vem do porto, reforçando a desolação. O contraste entre a etiqueta cortesã — “bandeira inglesa”, “corte”, “bandeja de prata” — e o massacre expõe a violência travestida de civilidade. O refrão “Deus salve” volta como fórmula vazia, uma bênção ao saque, ampliando a leitura alegórica da ditadura brasileira, em que a ordem oficial legitima a morte. Inserida na colaboração de Milton com o Som Imaginário, a moldura sonora com tintas de rock progressivo (ecoando Pink Floyd e Genesis) intensifica o clima cinematográfico e opressivo, fazendo de “Bodas” um retrato da pilhagem — do porto à corte — em que o navio parte com riqueza e deixa luto.