País de Gelo

Crítica social e ironia em "País de Gelo" de Rui Veloso

Em "País de Gelo", Rui Veloso utiliza a lenda da "nau catrineta" para criar uma narrativa irônica e sombria, que funciona como uma crítica à condição humana diante de tragédias coletivas. Ao mencionar uma embarcação com "mil e doze a bordo" e uma tripulação diversificada, incluindo "mulheres de má vida a padres e mesteireiros", o artista constrói um retrato da sociedade portuguesa, reunindo diferentes classes e tipos sociais em uma jornada destinada ao fracasso. O início da viagem, com clima de piquenique, logo dá lugar ao desespero, evidenciando a ironia da letra: o que parecia uma aventura promissora se transforma em tragédia, marcada por doenças, morte e até canibalismo, como em "foram tirando à sorte quem havia de morrer / Para que o vizinho do lado tivesse o que comer".

A referência à "nau catrineta" conecta a música à tradição oral portuguesa, mas Rui Veloso inverte o heroísmo das epopeias marítimas ao inserir elementos grotescos e humor negro, aproximando a viagem de um "inferno de dante". O "país do gelo" do título representa um destino ambíguo: ao mesmo tempo que sugere alívio do sofrimento, com "mil cristais a brilhar" e "lençóis de linho a plumas acolchoados", também remete à morte e ao esquecimento, já que os sobreviventes "dormiram para sempre como meninos cansados". Assim, a música reflete sobre a fragilidade humana, a perda da inocência e a busca por redenção em meio ao caos, usando a história marítima de Portugal como pano de fundo para uma alegoria sobre sobrevivência e desilusão.