Ruthless

Desejo, autocontrole e fuga em “Ruthless”, de The Marias

Em “Ruthless”, do EP Superclean, Vol. II (2018), a narradora expõe a tensão entre desejo e autocontrole. O verso “In darkness I’m ruthless” (na escuridão eu sou implacável) não fala de crueldade com o outro, e sim do instante em que o impulso derruba as defesas. Logo no início, “We’re meant to be friends” (é para sermos amigos) impõe um limite social que ela não sustenta diante do ímpeto de “I wanna scream your name, again and again” (quero gritar seu nome, de novo e de novo). Entre a euforia de “it feels just like angels in my head” (é como se houvesse anjos na minha cabeça) e o peso da consciência, a “escuridão” vira o espaço em que as fantasias ganham força. “You’re nothing like me” (você não é nada como eu) aponta o fascínio pelo oposto, enquanto “I’m circling the room in gold and French perfume” (estou rodando pela sala em ouro e perfume francês) pinta uma festa de brilho, aroma e desorientação.

Na segunda metade, a letra alterna vulnerabilidade e desejo direto. “I’m misunderstood” (sou incompreendida) e “the only one who knows I could see it all in black and white” (o único que sabe que eu poderia ver tudo em preto e branco) sugerem que essa pessoa traz clareza num mundo nebuloso, mas o vínculo é sobretudo físico e noturno: “I could be your lullaby / Be my lover every night” (eu poderia ser sua canção de ninar / seja meu amante toda noite). O motivo do sono — “talking in my sleep”/“lullaby” (falando enquanto durmo/canção de ninar) — remete ao inconsciente, onde a confissão escapa. “Can we fly away?” (podemos voar para longe?) propõe fugir juntos dessa tensão. O clipe, lançado em 15 de agosto de 2019 — data tradicional de celebração das Marías —, mostra María Zardoya em um passeio de barco, num erotismo sereno que troca a “escuridão” por água e noite como espaços de rendição silenciosa. Dirigido e produzido por Ian Lipton com a banda, privilegia poucas imagens e muita sugestão, reforçando que, longe das luzes, a tentação fala mais alto.