This Is Not America, do Residente: conheça o significado da canção

Analisando letras · Por Camila Fernandes

26 de Abril de 2022, às 12:00


Toda vez que alguém se refere aos EUA como América, eu penso: e o resto do continente?. É assim que René Pérez, o rapper Residente, resume o significado do single This Is Not America. Por meio da canção, ele faz questão de destacar que a América é um continente, não um país

Rapper Residente
Créditos: Divulgação

This Is Not America foi lançada em março de 2022 pelo cantor e compositor porto-riquenho, com participação das gêmeas franco-cubanas Lisa-Kaindé e Naomi Díaz, que formam o duo Ibeyi. Cheia de referências às culturas latino-americanas, a canção se propõe a mostrar a América de ponta a ponta, da Terra do Fogo, no extremo sul, ao extremo norte do Canadá.  

Residente é conhecido pelo ativismo, e a crítica ao imperialismo norteamericano não é assunto novo. This Is Not America fala sobre as marcas da colonização, a violência e os jogos de poder, tudo isso citando e mostrando cenas marcantes na história da América Latina. 

E aí, bateu a curiosidade para entender melhor o significado de This Is Not America? Vem conferir! 

This Is Not America: o significado da música de Residente

This Is Not America pode ser considerada uma diss track, um tipo de canção conhecida no rap por insultar alguém indesejado. No caso, o insulto vai para os colonizadores e para os Estados Unidos. 

O nome da música é referência a outro sucesso: This Is America, do rapper americano Childish Gambino, que traz uma crítica à sociedade “americana”, resumida aos Estados Unidos.

Claro que um tema tão importante pra ele merecia uma composição à altura. Para construir ritmo e melodia, o rapper trabalhou com pesquisadores da Yale University, que estudaram sua frequência cerebral, além da de outros animais.

Com base nessas frequências, a sonoridade foi criada. Trata-se de um trabalho extremamente complexo e as referências culturais usadas na letra e no clipe não deixam a desejar. 

Análise da letra de This Is Not America

Vamos conferir o significado da letra da música This Is Not America, do Residente:

Estamo’ aquí 

Estamos aqui

Oye, que estamo’ aquí 

Ouça, que estamos aqui

Mérame, estamo’ aquí 

Olha pra mim, estamos aqui

Desde hace rato, cuando ustedes llegaron 

Há um tempo, quando vocês chegaram

Ya estaban las huellas de nuestros zapatos 

As pegadas dos nossos sapatos já estavam aqui

Se robaron hasta la comida’e gato 

Roubaram até a comida do gato

Y todavía se están lamiendo el plato 

E ainda estão lambendo o prato

A música começa com um apelo que chama os olhos do mundo para a América Latina. Na primeira estrofe, o rapper lembra da exploração que foi sofrida por todo o continente durante a colonização, com extração de riquezas naturais e exploração dos povos nativos, inclusive nos Estados Unidos.

Exploração de povos indígenas na América
Créditos: Divulgação

Bien encabrona’o con estos ingratos 

Muito puto com esses ingratos

Hoy le doy duro a los tambores 

Hoje vou rufar forte os tambores

Hasta que me acusen de maltrato 

Até me acusarem de maus tratos

Si no entiendes el dato 

Se você não sabe interpretar dados

Pues te lo tiro en cumbia 

Bem, então te demonstro em cumbia

Bossanova, tango o vallenato 

Bossa nova, tango ou vallenato

Na segunda estrofe, o cantor manifesta sua raiva pelo esquecimento — muitas vezes a América Latina é reduzida a um “quintal” dos Estados Unidos e o continente é esquecido, apesar das inúmeras contribuições econômicas e culturais que já deu ao restante do mundo. 

Mapa do continente Americano
Créditos: Divulgação

Como exemplo, ele cita ritmos famosos que se espalharam pelo mundo, como a cumbia e o vallenato colombianos, a bossa nova brasileira e o tango argentino. 

A lo calabó y Bambú, bien Frontú 

Firme como Ilomba e Bambu, muito Frontú

Con sangre caliente como Timbuktu 

Com sangue quente tipo Timbuktu

Estamos dentro del menú 

Estamos incluídos no menu

2pac se llama 2pac por Túpac Amaru del Perú 

2pac se chama 2pac pelo Túpac Amaru do Peru

Na estrofe seguinte, os dois primeiros versos fazem referência a trechos de um famoso poema porto-riquenho, Danza Negra ou Calabó y Bambú, do escritor Luis Palés Matos, conhecido como criador do  gênero de poesia afro-antilhano. 

O poema aqui serve para lembrar as milhares de pessoas escravizadas nas américas. Calabó é uma madeira originária da África, em referência aos africanos escravizados, e o Bambu vem da Ásia.

Apesar de não ter sido forte no Brasil, a escravização dos chamados coolies asiáticos foi muito comum nos Estados Unidos, no Canadá, no Peru, em Cuba e em outros lugares da América Central.

Na mesma estrofe, a música ainda lembra que a América está no menu, o que pode ser uma referência aos pratos e especiarias importados daqui que conquistaram o mundo, ou mesmo às contribuições da cultura latina. 

Por fim, a letra lembra de 2Pac, um dos rappers americanos mais aclamados, que se chamava Tupac Amaru, mesmo nome do último imperador inca do Peru.

América no es solo USA, papá 

A América não é apenas os EUA, mano

Esto es desde Tierra del Fuego hasta Canadá 

Ela vai desde a Terra do Fogo até o Canadá

Hay que ser bien bruto, bien hueco 

Tem que ser muito ignorante, muito cabeça-oca

Es como decir que África es solo Marruecos 

É tipo dizer que África é só o Marrocos

A estrofe seguinte reforça o recado principal da música: é tolice reduzir a América aos Estados Unidos. A América vai da Terra do Fogo, um grupo de ilhas que fica no extremo sul da América do Sul, até o Canadá, no extremo norte.

A estos canallas Esses canalhas

Se les olvidó que el calendario que usan se lo inventaron los Mayas 

Se esqueceram que o calendário que eles usam foi inventado pelos Maias

Con La Valdivia Precolombina 

Com a Valdívia pré-colombiana

Desde hace tiempo, ah 

Há muito tempo, ah

Este continente camina 

Este continente já anda

O rapper questiona o “esquecimento” das contribuições históricas da América Latina, como a cultura valdívia pré-colombiana, que existia no sul do Equador, e até mesmo o calendário maia, ainda usado na América Central.

Calendário Maia
Créditos: Divulgação

Pero ni con toda la marina 

Mas nem mesmo com toda a marinha

Pueden sacar de la vitrina la peste campesina 

Eles conseguem jogar a peste rural pela janela

Esto va pa’l capataz de la empresa 

Essa aqui vai para o feitor da empresa

El machete no solo es pa’ cortar caña 

O facão não serve só pra cortar cana

También es pa’ cortar cabezas 

Também serve pra cortar cabeças

Em seguida, a letra relembra as várias revoluções camponesas que aconteceram em toda a América Latina, com destaque para o surgimento das FARC na Colômbia e para a revolução em Cuba, que sempre foram combatidas com fortalecimento do poder militar e às vezes com apoio dos países imperialistas.

FARC
Créditos: Divulgação

No entanto, nem com toda a força militar do mundo foi possível calar a “peste campesina”. 

Aquí estamos, siempre estamos 

Estamos aqui, estamos sempre

No nos fuimos, no nos vamos 

Nós não fomos embora, nós não vamos

Aquí estamos pa’ que te recuerdes 

Estamos aqui pra você se lembrar

Si quieres, mi machete te muerde 

Se você quiser, meu facão vai te pegar

Já no refrão, cantado pela dupla Ibeyi, a música lembra que apesar de todo o massacre sofrido em toda a América, sem exceção, os povos originários continuam aqui.

Bandeira Mapuche sobre estátua militar no Chile
Bandeira Mapuche sobre estátua militar no Chile / Créditos: Divulgação

Da mesma forma, mesmo esquecidos pelo restante do mundo, o restante da América existe e resiste ao poder dos EUA.

Los paramilitares, la guerrilla 

Os paramilitares, a guerrilha

Los hijos del conflicto, las pandillas 

Os filhos do conflito, as gangues

Las listas negras, los falsos positivos 

Listas negras, os falsos positivos

Los periodistas asesinados, los desaparecidos 

Os jornalistas assassinados, os desaparecidos

A segunda parte da música lembra acontecimentos da história recente das américas: as forças paramilitares, as guerrilhas, as gangues, os misteriosos desaparecimentos durante os regimes ditatoriais. 

São citados dois casos específicos: as famosas listas negras da ditadura argentina, com nomes de pessoas que eram inimigas do regime, e o escândalo dos falsos positivos na Colômbia, em que os militares assumiram o assassinato de centenas de jovens inocentes que eram executados para fingir que o governo estava matando membros das Forças Armadas Revolucionárias Colombianas (FARC).

Los narcos gobiernos, todo lo que robaron 

Os governos de milícia, tudo que eles roubaram

Los que se manifiestan y los que se olvidaron 

Aqueles que se manifestam e os que foram esquecidos

Las persecuciones, los golpes de Estado 

As perseguições, os golpes de Estado

El país en quiebra, los exiliados 

O país falido, os exilados

El peso devaluado 

A moeda desvalorizada

Os narco-governos aqui citados são países em que o tráfico de drogas tem grande influência na economia (e consequentemente na política). Atualmente, México, Colômbia, Suriname e Venezuela são exemplos do narco-capitalismo na América.

A letra também lembra os inúmeros golpes de estado, as pessoas perseguidas e exiladas pelas ditaduras, e a severa desvalorização da moeda local que já aconteceu em diversos países em diferentes momentos. 

El tráfico de droga, los carteles 

O tráfico de drogas, os cartéis

Las invasiones, los emigrantes sin papeles 

As invasões, os imigrantes sem documentos

Cinco presidentes en once días 

Cinco presidentes em onze dias

Disparo a quema ropa por parte de la policía 

Baleado à queima-roupa pela polícia

Um dos fenômenos atuais mais marcantes na América Latina, a migração para os EUA não poderia ficar fora da canção de protesto.

“Sin papeles” é a forma como se denominam os imigrantes indocumentados que saem de diversos países da América, principalmente da Central, em busca do sonho americano nos Estados Unidos.

A penúltima frase fala sobre o colapso argentino ocorrido em 2001, em que o país chegou a ter 5 presidentes diferentes no período de 11 dias.

5 presidentes argentinos em 11 dias
5 presidentes argentinos em 11 dias / Créditos: Divulgação

Já o último verso se refere ao cantor e professor chileno Victor Jara, que foi preso, torturado e assassinado pela polícia durante a ditadura no Chile.

Más de cien años de tortura

Mais de cem anos de tortura

La nova trova cantando en plena dictadura 

A nova trova cantando em plena ditadura

Somos la sangre que sopla la presión atmosférica

Somos o sangue que sopra a pressão atmosférica

Gambino, mi hermano 

Gambino, meu irmão

Esto sí es América 

Esta, sim, é a América

“Cem anos de tortura” pode ser uma referência ao livro Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel Garcia Marquez, uma das obras mais famosas no retrato da vida na América Latina. 

Já a “nova trova” é um ritmo musical surgido em meio ao movimento artístico, cultural e político durante a ditadura cubana. No fim da estrofe, Residente encerra com um recado para o rapper Childish Gambino: isso sim é América.

This is música americana

This Is Not America, do Residente, traz um significado cheio de referências à cultura latino americana. Que tal continuar viajando pela América com 17 hits da música latina?

Melhores músicas latinas

Outros posts para conferir:


Leia também