A Saudade Continua

Saudade, fé e sobrevivência em “A Saudade Continua”

Mais do que carta, “A Saudade Continua”, de 509-e, é registro datado de dentro do Carandiru — “20 de dezembro de 2001, carandiru” — e um plano de sobrevivência emocional. A conversa com a amiga organiza a rotina pesada do cárcere — “física, campo, visita, jogo” / “ripa atrás de ripa” / “o juiz deu o dobro” / “a morte nos visita” — para convertê-la em esperança de retorno ao “mundão”: “2002 é o ano… to voltando”. Escrita pelos dois integrantes enquanto presos e lançada no álbum MMII DC (2002), a faixa assume o papel de porta-voz dos encarcerados por narrar a realidade de dentro da cela 509‑E. O narrador alterna baque e fé: evoca Tim Maia nas perdas (“cantando lamentos”), reafirma espiritualidade (“o Senhor é meu pastor”) e registra a virada de consciência — “Hoje eu respeito muito mais a vida”. O refrão condensa a força motora: a saudade que dói, mas sustenta o sonho de reencontro e liberdade.

No meio da carta, ele celebra o improvável: mesmo preso, o trampo ganhou respeito e abriu portas — “prêmio… revelação do ano” / “várias entrevistas… palestras em escola e até em faculdade”. Isso se conecta ao momento em que o grupo virou referência nacional e voz de quem está atrás das grades; quando diz “deu 509 até na Febem”, mostra que a mensagem alcançou jovens privados de liberdade. A metáfora “até no lixão uma flor pode nascer” opera em dois níveis: resiliência de quem é invisibilizado e, literalmente, o florescer de arte dentro do Carandiru. Ao citar Evely, Igor, Laisla, Simone, o “tiro na espinha” do Gilmar e a “fita do escadão”, humaniza a quebrada e as consequências da violência. Fecha pedindo união sem armas, ecoando Bob Marley. No balanço final, a transformação prevalece: entre o peso do sistema e os vínculos afetivos, a saudade segue ferida e combustível, mantendo a fé de “se encontrar no mundão logo mais” sem romantizar o cárcere.