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Águas de Março: a história da música de Tom Jobim

Analisando letras · Por Rafaela Damasceno

1 de Dezembro de 2020, às 12:00

Tom Jobim é considerado um dos maiores nomes da música nacional. Reconhecido por ter sido um dos criadores da bossa nova e um dos renovadores do samba carioca, ele também era maestro e tocava vários instrumentos.

Tom jobim águas de março
Créditos: Divulgação

Suas canções, que representam uma herança viva de seu talento, até hoje emocionam gerações de fãs. É o caso de Águas de Março, uma das suas composições mais famosas que já foi considerada a melhor música brasileira de todos os tempos.

Mas o que muita gente não sabe é que essa verdadeira obra de arte foi composta por Tom Jobim por acaso, sem grandes expectativas.

Ficou curioso para saber mais sobre a história de Águas de Março? Descubra a seguir!

Águas de Março: a história da música

Em março de 1972, Tom Jobim passou um período em seu sítio de Poço Fundo, na região serrana do Rio de Janeiro, com o objetivo de finalizar o álbum Matita Perê — que de fato foi lançado no ano seguinte. 

Ele buscava por inspiração naquele lugar que lhe proporcionou a criação de outros sucessos, como Chega de Saudade e Chovendo na Roseira

Capa do álbum Matita Perê
Capa do álbum Matita Perê / Créditos: Divulgação

Infelizmente, o sossego que ele tanto queria não foi possível. A propriedade estava passando por obras, em meio às chuvas daquele mês.

Entre um trabalho e outro, durante uma pausa, Tom começou a tocar uma melodia nova no violão. Eram as primeiras notas de Águas de Março. Sua mulher, Teresa, logo elogiou o som e o compositor escreveu os versos da tão conhecida letra, em um pedaço de papel de pão.

Porém, não foi só o clima e a construção que inspiraram o artista. No encarte do disco em que ela foi lançada, naquele mesmo ano, ele explicou que a sua maior inspiração foi o poema O Caçador de Esmeraldas, de Olavo Bilac. 

Como estava lendo Carlos Drummond de Andrade, Mário Palmério e Guimarães Rosa para compor as músicas de Matita Perê, ele também atribui as influências de Águas de Março a esses autores. 

Por fim, Tom também foi inspirado por Ponto de Macumba, gravada por JB de Carvalho, do Conjunto Tupi. Aliás, os primeiros versos das duas músicas são bem parecidos! Olha só:

Uma análise de Águas de Março

Não é só o ritmo que faz a diferença em uma música inesquecível. A letra também é fundamental e, no caso das produções da bossa nova, esse é um dos fatores que contribuem para o reconhecimento dos artistas. 

Vem conferir a nossa análise estrofe a estrofe de Águas de Março:

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o Sol
É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol
É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá, candeia, é o Matinta Pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira

Lembra que falamos que Tom Jobim escreveu esta canção enquanto passava um tempo no seu sítio? E que o local estava passando por obras? Pois é, a primeira estrofe representa bem essa situação — pau, pedra, caco de vidro, madeira, ribanceira. 

Mas ela vai muito além da lista de materiais de construção com que o artista se deparou naquele momento. Cada um desses elementos representa várias dualidades transmitidas por toda a música.

É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão

Além do sentimento contraditório que nos faz querer e não querer o tempo inteiro, Tom também conseguiu demonstrar a essência da vida de cada um desses materiais ou seres que ele menciona. 

Com a prevalência do verbo “ser” conjugado na terceira pessoa do singular, entramos em contato com o que cada componente citado realmente é: é o vento ventando, é a chuva chovendo…

É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto, o desgosto, é um pouco sozinho
É um estrepe, é um prego, é uma ponta, é um ponto
É um pingo pingando, é uma conta, é um conto
É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada

Nesta estrofe, a referência à construção no sítio do artista aparece novamente. Dessa vez, com o tijolo chegando. É que Tom e a esposa estavam hospedados em uma casinha de pau a pique, chamada por eles de “Barraco nº 2”, enquanto a casa principal era construída. 

Tom e Ana Jobim
Tom e Ana Jobim, sua esposa / Créditos: Divulgação

Um contraste na vida do compositor, do velho com o novo, do acabado com o inacabado, que certamente também o inspiraram ao escrever esta letra. São mais algumas dualidades que nos acompanham pela vida. 

É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

Todos esses “personagens” de Águas de Março, sejam eles naturais ou não, são demonstrados em sua simplicidade. Cada um deles com a sua função primordial, que faz com que eles sejam quem realmente são: uma cobra, um pau, João, José, um espinho na mão…

Mais um ensinamento filosófico que Tom nos transmite com a sua letra: a vida é o que ela é, as coisas são o que são. Simples e puras, como uma construção artesanal e os fenômenos da natureza. 

Au, edra, im, minho
Esto, oco, ouco, inho
Aco, idro, ida, ol, oite, orte, aço, zol
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

Para finalizar, com várias assonâncias, ao retirar a primeira letra de algumas palavras que compõem a música, o artista nos presenteia com mais uma reflexão profunda. 

No decorrer da vida, somos marcados pela expectativa do fim, aqui representada pelo fechamento do verão.

Aos poucos, o começo se perde e o que nos resta é a promessa de uma nova vida, depois da morte. E, embora essa passagem seja óbvia, é ela que faz o ato de viver ser tão mágico! 

As muitas versões de Águas de Março

Tom Jobim não foi o único que gravou Águas de Março. Seja em parceria com outros cantores, seja em interpretações de outros artistas, esse sucesso da bossa nova ganhou diversas variações.

A primeira delas foi uma gravação de Tom ao lado de Elis Regina, no CD Elis & Tom, de 1974. Foi essa versão, inclusive, que popularizou a canção. 

Também se destacam outras regravações, como a de João Gilberto, Leny Andrade, Miúcha, Nara Leão, Joyce, Danilo Caymmi e muitas outras. 

Além das fronteiras nacionais, a música também chamou a atenção no exterior. Em inglês, diversas versões de Waters Of March foram lançadas, nas vozes de Art Garfunkel, Al Jarreau, Ella Fitzgerald e Dionne Warwick. 

Sem falar nas bilíngues, como o caso da gravação de David Byrne e Marisa Monte. Olha só:

E também existe outra em francês, Les Eaux de Mars, gravada por Georges Moustaki e Stacey Kent.

Saiba mais sobre a bossa Nova

A bossa nova é um dos principais estilos musicais brasileiros e inovou a forma de compor dos artistas nacionais.

Nomes como Tom Jobim e Vinícius de Moraes foram os precursores desse movimento, que mesclou o jazz americano com o samba carioca. 

Você acaba de saber a história de Águas de Março, uma das canções mais importantes do estilos. Agora, que tal conhecer outras 18 músicas que marcaram a bossa nova?

Músicas bossa nova

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